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Escrito na Água:

O premiado encenador e dramaturgo Stan Lai está de regresso ao CCM com Escrito na Água, uma reconhecida peça estreada em Hong Kong, tendo mais tarde andado em digressão noutras cidades da região. Aqui fica um breve relato na primeira pessoa sobre o que o inspirou na escrita desta obra-prima aclamada tanto no mundo de língua chinesa como internacionalmente.

a perspectiva do encenador

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@Qin Zhong
@Gao Jianping

Nessa altura eu tinha acabado dois extensos trabalhos consecutivos. Houve Anos Luz, em Pequim , uma peça que relatava 30 anos de evolução social na China através de um olhar televisivo. E houve A Aldeia, em Taipé [apresentado pelo CCM em 2011], que girava em torno de três gerações de migrantes da China Continental ao longo de 50 anos em Taiwan.  Épicas e vastas, as peças cobriam décadas, contando histórias de vida complexas povoadas por uma série ampla de personagens. Para ser sincero, depois desse período intenso, quando cheguei a Hong Kong sentia que a minha mente estava vazia. Entrar numa sala praticamente sem ideias para uma nova peça foi para mim uma novidade, uma vez que estava habituado a chegar aos primeiros ensaios já com uma imagem clara e uma linha de acção bem desenvolvida.

Escrito na Água foi produto de um trabalho concebido ao longo de sete anos. No início de 2009 fui convidado pelo Teatro Repertório de Hong Kong a partilhar com eles o meu método especial de criação teatral, trabalhando com um grupo de jovens actores. Não me foi dado qualquer tópico ou formato específico, estava tudo nas minhas mãos. A única coisa definida foi a data de estreia.

Como sempre, inspirei-me naquilo que me rodeava. Lembro-me de ir a pé de Sheung Wan para Central à hora de almoço no dia do primeiro ensaio. Foi numa época de crise económica e eu via rostos infelizes por todo lado. Também tinha traduzido Felicidade, de Matthieu Ricard, que no seu livro define vários níveis de felicidade e elucida sobre os motivos que levam as pessoas a não se sentirem satisfeitas com as suas vidas na era moderna. Lembro-me de andar por Central e sentir que tinha entrado num sonho surrealista, ou num pesadelo de um quadro expressionista, no qual a infelicidade de toda a gente se manifestava como  no Grito de Munch e fosse projectada nos céus de Hong Kong. Ninguém sorria ou falava sequer. As pessoas moviam-se apenas, silenciosamente, na sua penosa existência. Ocorreu-me que pudesse estar a passear numa espécie de inferno ou, talvez, o lugar mais infeliz da Terra. Por isso decidi criar uma peça sobre a felicidade.

Entretanto, li sobre um austríaco que manteve a família aprisionada numa cave ao longo de vinte anos. As atrocidades relatadas dilaceraram-me o coração e deixaram-me furioso.

No entanto, o sentimento de revolta não é o mais adequado a um dramaturgo. Um dramaturgo procura desvendar as verdades. Por detrás da violência poderá haver um amor que, pela sua distorcida natureza, seja impossível de classificar como tal? Não é novidade que os seres humanos usam a violência e magoam outros em nome da paixão. Mas será que existe uma definição comummente aceite de felicidade, de afecto?

Levei estas reflexões para o ensaio e depressa surgiu uma história. Era um conto sobre um “professor de felicidade” (algo que inventei no momento) e a mãe que nunca conhecera. Contar esta história era a minha forma de “traduzir”, enquanto dramaturgo, as terríveis notícias que lia. Embora Escrito na Água tivesse recebido boas críticas após a estreia em Hong Kong em Março de 2009 e em Taipé em 2010 (sob o título Lições de Felicidade), senti que faltava algo.

Foi então que He Jiong se juntou ao elenco e eu pude olhar para a estrutura da peça com outros olhos. Depois de um processo de reescrita rigoroso, durante o qual foram feitas muitas mudanças, com eliminação ou transformação de personagens, voilá, Escrito na Água pareceu-me finalmente completo.

Como sempre, é fantástico trabalhar com a cenógrafa e figurinista Sandra Woodall. Ela ultrapassou inúmeros desafios com talento, profissionalismo e graciosidade, tendo feito excelentes escolhas criativas.

Também foi gratificante trabalhar outra vez com o designer de luzes Xiao Lihe, uma vez que colaborámos pela primeira vez em 1998 na Peça dos Espíritos de Kuo Pao Kun. Trabalhar com uma força artística como ela é sempre reconfortante.

Gostaria de agradecer uma vez mais a He Jiong por esta fantástica aventura. Um experiente veterano dos palcos que deixou a sua marca em Um Amor Secreto no Paraíso [apresentada pelo CCM em 2009], desde 2006, com a sua devoção e clareza a tornarem possível fazer de Escrito na Água aquilo que é hoje.

De todas as personagens a que dei vida nas minhas peças, Shui’er talvez seja a mais especial. De certa forma ela não é muito diferente de Miranda em A Tempestade, de Shakespeare. Ela dá por si num “admirável mundo novo”, no entanto está confinada às paredes frias da realidade. Sinto tristeza de cada vez que penso nela. Onde está a origem do bem e do mal no mundo? O que é que gera a violência? O que define o amor, alegria e felicidade? Dedico esta peça a todos os que se sentem infelizes. Que possam encontrar a sua verdadeira felicidade.

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@Stan Lai
Stan Lai
Dramaturgo/ Encenador

Stan Lai é uma das mais reconhecidas vozes do teatro contemporâneo chinês, tido pela BBC como “o melhor dramaturgo e encenador em língua chinesa do mundo” , descrito pela revista Asia Weekly como o “grande encenador teatral asiático”. Lai é director artístico do teatro Performance Workshop de Taipé, do Theatre Above em Xangai e co-fundador do Festival de Teatro de Wuzhen, do qual se tornou director.

De entre os mais de 40 trabalhos por si criados, destaque para Um Amor Secreto no Paraíso, vista como a obra-prima de teatro contemporâneo chinês, a comovente tragicomédia A Aldeia (ambas já apresentadas no CCM), e Um Sonho como um Sonho, uma peça épica de oito horas. Os trabalhos de Lai são frequentemente levados à cena em toda a China e no mundo de língua chinesa, bem como no ocidente. Peças como Um Amor Secreto…, apresentada no Festival Shakespeare de Oregon (2015) e a imersiva Passeio Nocturno no Jardim Chinês, levada à cena nos Jardins da Biblioteca Huntington de Los Angeles (2018), foram unanimemente aclamadas pela crítica e pelo público. Para além disso, Lai também é um reconhecido guionista e realizador de cinema, tendo sido premiado nos festivais internacionais de Tóquio, Berlim e Singapura, sendo também encenador de ópera e director de eventos (Cerimónia de Abertura dos Surdolímpicos, 2009). Lai doutorou-se em Arte Dramática pela Universidade de Berkeley, na Califórnia, e tem dado aulas com frequência na Universidade das Artes de Taipé, tal como em Berkeley e Stanford.

Path 1

Entretanto, li sobre um austríaco que manteve a família aprisionada numa cave ao longo de vinte anos. As atrocidades relatadas dilaceraram-me o coração e deixaram-me furioso.

No entanto, o sentimento de revolta não é o mais adequado a um dramaturgo. Um dramaturgo procura desvendar as verdades. Por detrás da violência poderá haver um amor que, pela sua distorcida natureza, seja impossível de classificar como tal? Não é novidade que os seres humanos usam a violência e magoam outros em nome da paixão. Mas será que existe uma definição comummente aceite de felicidade, de afecto?

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Levei estas reflexões para o ensaio e depressa surgiu uma história. Era um conto sobre um “professor de felicidade” (algo que inventei no momento) e a mãe que nunca conhecera. Contar esta história era a minha forma de “traduzir”, enquanto dramaturgo, as terríveis notícias que lia. Embora Escrito na Água tivesse recebido boas críticas após a estreia em Hong Kong em Março de 2009 e em Taipé em 2010 (sob o título Lições de Felicidade), senti que faltava algo.

Foi então que He Jiong se juntou ao elenco e eu pude olhar para a estrutura da peça com outros olhos. Depois de um processo de reescrita rigoroso, durante o qual foram feitas muitas mudanças, com eliminação ou transformação de personagens, voilá, Escrito na Água pareceu-me finalmente completo.

Como sempre, é fantástico trabalhar com a cenógrafa e figurinista Sandra Woodall. Ela ultrapassou inúmeros desafios com talento, profissionalismo e graciosidade, tendo feito excelentes escolhas criativas.

Também foi gratificante trabalhar outra vez com o designer de luzes Xiao Lihe, uma vez que colaborámos pela primeira vez em 1998 na Peça dos Espíritos de Kuo Pao Kun. Trabalhar com uma força artística como ela é sempre reconfortante.

Gostaria de agradecer uma vez mais a He Jiong por esta fantástica aventura. Um experiente veterano dos palcos que deixou a sua marca em Um Amor Secreto no Paraíso [apresentada pelo CCM em 2009], desde 2006, com a sua devoção e clareza a tornarem possível fazer de Escrito na Água aquilo que é hoje.

De todas as personagens a que dei vida nas minhas peças, Shui’er talvez seja a mais especial. De certa forma ela não é muito diferente de Miranda em A Tempestade, de Shakespeare. Ela dá por si num “admirável mundo novo”, no entanto está confinada às paredes frias da realidade. Sinto tristeza de cada vez que penso nela. Onde está a origem do bem e do mal no mundo? O que é que gera a violência? O que define o amor, alegria e felicidade? Dedico esta peça a todos os que se sentem infelizes. Que possam encontrar a sua verdadeira felicidade.

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Stan Lai é uma das mais reconhecidas vozes do teatro contemporâneo chinês, tido pela BBC como “o melhor dramaturgo e encenador em língua chinesa do mundo” , descrito pela revista Asia Weekly como o “grande encenador teatral asiático”. Lai é director artístico do teatro Performance Workshop de Taipé, do Theatre Above em Xangai e co-fundador do Festival de Teatro de Wuzhen, do qual se tornou director.

Stan Lai
Dramaturgo/ Encenador

De entre os mais de 40 trabalhos por si criados, destaque para Um Amor Secreto no Paraíso, vista como a obra-prima de teatro contemporâneo chinês, a comovente tragicomédia A Aldeia (ambas já apresentadas no CCM), e Um Sonho como um Sonho, uma peça épica de oito horas. Os trabalhos de Lai são frequentemente levados à cena em toda a China e no mundo de língua chinesa, bem como no ocidente. Peças como Um Amor Secreto…, apresentada no Festival Shakespeare de Oregon (2015) e a imersiva Passeio Nocturno no Jardim Chinês, levada à cena nos Jardins da Biblioteca Huntington de Los Angeles (2018), foram unanimemente aclamadas pela crítica e pelo público. Para além disso, Lai também é um reconhecido guionista e realizador de cinema, tendo sido premiado nos festivais internacionais de Tóquio, Berlim e Singapura, sendo também encenador de ópera e director de eventos (Cerimónia de Abertura dos Surdolímpicos, 2009). Lai doutorou-se em Arte Dramática pela Universidade de Berkeley, na Califórnia, e tem dado aulas com frequência na Universidade das Artes de Taipé, tal como em Berkeley e Stanford.

@Stan Lai
56A9662s
Escrito na Água:

a perspectiva do encenador

ET0A3201s

O premiado encenador e dramaturgo Stan Lai está de regresso ao CCM com Escrito na Água, uma reconhecida peça estreada em Hong Kong, tendo mais tarde andado em digressão noutras cidades da região. Aqui fica um breve relato na primeira pessoa sobre o que o inspirou na escrita desta obra-prima aclamada tanto no mundo de língua chinesa como internacionalmente.

@Gao Jianping
@Qin Zhong

Nessa altura eu tinha acabado dois extensos trabalhos consecutivos. Houve Anos Luz, em Pequim , uma peça que relatava 30 anos de evolução social na China através de um olhar televisivo. E houve A Aldeia, em Taipé [apresentado pelo CCM em 2011], que girava em torno de três gerações de migrantes da China Continental ao longo de 50 anos em Taiwan.  Épicas e vastas, as peças cobriam décadas, contando histórias de vida complexas povoadas por uma série ampla de personagens. Para ser sincero, depois desse período intenso, quando cheguei a Hong Kong sentia que a minha mente estava vazia. Entrar numa sala praticamente sem ideias para uma nova peça foi para mim uma novidade, uma vez que estava habituado a chegar aos primeiros ensaios já com uma imagem clara e uma linha de acção bem desenvolvida.

Como sempre, inspirei-me naquilo que me rodeava. Lembro-me de ir a pé de Sheung Wan para Central à hora de almoço no dia do primeiro ensaio. Foi numa época de crise económica e eu via rostos infelizes por todo lado. Também tinha traduzido Felicidade, de Matthieu Ricard, que no seu livro define vários níveis de felicidade e elucida sobre os motivos que levam as pessoas a não se sentirem satisfeitas com as suas vidas na era moderna. Lembro-me de andar por Central e sentir que tinha entrado num sonho surrealista, ou num pesadelo de um quadro expressionista, no qual a infelicidade de toda a gente se manifestava como  no Grito de Munch e fosse projectada nos céus de Hong Kong. Ninguém sorria ou falava sequer. As pessoas moviam-se apenas, silenciosamente, na sua penosa existência. Ocorreu-me que pudesse estar a passear numa espécie de inferno ou, talvez, o lugar mais infeliz da Terra. Por isso decidi criar uma peça sobre a felicidade.

Escrito na Água foi produto de um trabalho concebido ao longo de sete anos. No início de 2009 fui convidado pelo Teatro Repertório de Hong Kong a partilhar com eles o meu método especial de criação teatral, trabalhando com um grupo de jovens actores. Não me foi dado qualquer tópico ou formato específico, estava tudo nas minhas mãos. A única coisa definida foi a data de estreia.