Tido como a voz mais entusiasmante da China, o cantor de jazz Coco Zhao vai deleitar o público do CCM com uma mescla única de sonoridades orientais e ocidentais. Antecipando a sua estreia em Macau, fomos em busca das raízes e influências de uma estrela cativante que, ao longo das últimas décadas, tem sido um dos principais contribuidores para o retorno e a promoção da exótica e excitante cena jazzística de Xangai.
Para a maioria das pessoas, a palavra jazz traz à mente um mundo imagético e sonoro imediatamente ligado à
herança musical afro-americana que, desde o início do século passado, começou a imortalizar inúmeras
melodias, músicos e cantores, de Louis Armstrong a Miles Davis, entre muitos outros ícones. No entanto,
desde então floresceram muitas outras ramificações do jazz noutras partes do mundo, nomeadamente na China.
Músicos como Coco Zhao começaram assim a emergir enquanto produtos da contínua miscigenação cultural e
reinvenção artística que moldou o jazz ao longo das últimas décadas. Nascido numa família de cantores de
ópera chinesa, o artista sediado em Xangai iniciou os estudos ainda muito jovem, depois de ter ingressado no
conservatório da cidade. “O meu amor pelo jazz surgiu quando era miúdo – tinha 10 anos. Estava a ouvir os
álbuns dos meus pais e escutei a Billie Holiday. Comecei então a ouvi-la muito. E quando comecei a cantar,
retornei a esse som”, revelou certa vez.
Anos mais tarde, Zhao estava a estudar música clássica,
chinesa e ocidental, numa altura em que ainda não era fácil, a quem vivia na China, seguir uma carreira no
jazz. Os novos entusiastas não tinham outra alternativa senão autoeducar-se, com a ajuda de cassetes-vídeo e
discos, ou aprender com os amigos. Assim sendo, foi já em meados dos anos 90, à medida que o jazz vindo do
ocidente se tornou cada vez mais acessível no país, que Coco pôde finalmente dedicar-se a tempo inteiro à
sua paixão. Para além de algum tempo dedicado à teoria, o jovem vocalista foi-se imergindo de forma gradual,
captando ritmos e cadências, começando a compreender a linguagem universal do jazz. Embora nunca tivesse
tido qualquer treino formal de voz, Zhao desvenda que desenvolveu as suas capacidades vocais no chuveiro, o
que felizmente aconteceu mesmo a tempo para que pudesse fazer parte da reemergente cena de Xangai.
Há muito considerada como uma cidade de começos, um pote cultural onde se fundem Oriente e Ocidente, a proeminência da cidade de Xangai enquanto metrópole do jazz cresceu e desvaneceu-se entre os anos 20 e a década de 40. Enquanto primeira grande metrópole moderna da China no início do século XX, a cidade foi também a primeira paisagem urbana do país onde se puderam ver as primeiras ruas iluminadas, os eléctricos e os primeiros grandes armazéns. Parcialmente dividida entre um punhado de concessões estrangeiras, foi durante estes tempos de sublevação, agitação política e de abertura que a cidade portuária se desenvolveu enquanto centro comercial. Tal estatuto depressa atrairia uma onda de intelectuais, aventureiros e artistas, oriundos da China e do resto do mundo. Impelida pelos esfusiantes bares de marinheiros e militares, a exclusividade dos clubes para estrangeiros e os inúmeros “salões de dança volantes”, a abarrotar de clientes em busca de acompanhantes, a cidade oferecia um exuberante e fértil terreno cultural. Paralelamente à transformação em dinâmico centro de publicação e média, Xangai viu nascer uma pujante indústria discográfica. Cimentado pela popularidade crescente das transmissões radiofónicas, o novo circuito asiático partia da costa Oeste dos Estados Unidos, trazendo consigo uma corrente de músicos afro-americanos que iriam estabelecer a cena jazz local. Para além das influências intercontinentais, o novo swing asiático nasceu de uma fusão de música pop criada para o cinema e um híbrido de temas populares chineses. Foi também a primeira vez que músicos chineses começaram a fundir temas jazz e música popular, criando uma mescla de romance e luxúria que alguns críticos locais depreciavam, chamando-lhe “música amarela”.
Apesar de alguma resistência interna, a emergência de uma atmosfera especial foi ganhando força, abrindo espaço à ascensão de estrelas locais. Entre estas surgiram cantoras como Zhou Xuan, conhecida como a “voz de ouro” e considerada como a grande vocalista dessa era, e Yao Lee, uma artista de rádio descoberta pela própria Zhou, que por sua vez ganharia o epíteto de “voz de prata”. Naquele tempo, graças à popularidade dos temas musicais, da rádio e dos filmes, as indústrias musical e cinematográfica alimentavam-se mutuamente, desenvolvendo uma relação de interdependência entre a promoção discográfica e a venda de bilhetes de cinema. Por outro lado, o gosto pela experimentação juntou músicos criativos como Buck Clayton e Li Jinhui. Clayton era um músico afro-americano de jazz, estabelecido e influente, que tocou com a conhecida Orquestra de Count Basie e desembarcara em Xangai em 1935 com a sua Harlem Gentleman Band, e Li um compositor e escritor de canções frequentemente apelidado de pai da música popular chinesa. Esta improvável parceria resultou na criação de um som inovador chamado Shidaiqu, que literalmente quer dizer “canções da era”. O novo swing representaria o prólogo de muitas colaborações futuras.
Contudo, Xangai atravessava décadas turbulentas nos anos de 1930 e 1940 em diversas outras frentes, com a cidade a ter que lidar com sublevações sociais, guerra civil e até mesmo a invasão japonesa, impactos tectónicos que tiveram obviamente consequências em múltiplas perspectivas, incluindo, claro está, o panorama musical que teve então de enfrentar diversas restrições. O jazz murchava na cidade. E até aos anos de 1970 a música shidaiqu continuou a experienciar retrocessos em cima de retrocessos, com o encerramento de instalações e até perseguições, sendo que vários músicos optaram simplesmente por escapar (muitos deles para a vizinha Hong Kong). A cena jazzística de Xangai estava a atravessar um longo deserto.
Não obstante esta longa travessia, o jazz na cidade nunca se desvaneceu totalmente, graças a pequenas “bolsas de resistência” como a Old Jazz Band, um grupo de músicos octogenários cujos concertos no Peace Hotel continuam a encapsular o antigo swing de Xangai. Dando um salto para os anos 90, meio século após essa era de conturbados entusiasmos, o jazz começou de novo a vibrar na cidade em que Coco Zhao completou a sua metamorfose musical. Para além da efervescência de novos bares, clubes e etiquetas, Xangai começou a “fermentar” os seus próprios festivais em grande escala. Levado pela emergência da nova vaga jazzística, cujo público se renderia tanto à sua excentricidade e repertório como ao seu estilo, o cantor depressa subiu à ribalta. Fascinado pelo que descreveu como uma natureza “altamente inclusiva”, Zhao fez regressar a mescla de sabores do jazz dos anos 20 e 30, dando uma enorme contribuição a um período de renascimento do género musical. Para além de ter subido ao palco para actuar ao lado de lendas como a sensação norte-americana Betty Carter, ou do festival de Jazz de Montreal, colaborou com variados músicos, como o violinista Peng Fei com quem trabalhou numa série de interpretações de antigas melodias chinesas. Essas músicas fazem parte do produto final de Dream Situation, um álbum que apresenta arranjos modernos de standards, alguns dos quais se tornaram populares em Xangai há mais de 70 anos. Embora tenha surgido, uma vez mais, alguma rejeição inicial a este som renovado, fazendo lembrar alguma crítica que o jazz recebeu nos seus anos de ouro, o público acabou por se render à música de Zhao. Apesar de se ter receado pelo desaparecimento permanente deste género, afinal parece que o jazz esteve apenas adormecido. Felizmente, e graças à veia inovadora de músicos como Coco Zhao, um novo e entusiasmante ciclo estará apenas no seu começo.
Tido como a voz mais entusiasmante da China, o cantor de jazz Coco Zhao vai deleitar o público do CCM com uma mescla única de sonoridades orientais e ocidentais. Antecipando a sua estreia em Macau, fomos em busca das raízes e influências de uma estrela cativante que, ao longo das últimas décadas, tem sido um dos principais contribuidores para o retorno e a promoção da exótica e excitante cena jazzística de Xangai.
As tonalidades de Coco Zhao
Para a maioria das pessoas, a palavra jazz traz à mente um mundo imagético e sonoro imediatamente ligado à
herança musical afro-americana que, desde o início do século passado, começou a imortalizar inúmeras
melodias, músicos e cantores, de Louis Armstrong a Miles Davis, entre muitos outros ícones. No entanto,
desde então floresceram muitas outras ramificações do jazz noutras partes do mundo, nomeadamente na China.
Músicos como Coco Zhao começaram assim a emergir enquanto produtos da contínua miscigenação cultural e
reinvenção artística que moldou o jazz ao longo das últimas décadas. Nascido numa família de cantores de
ópera chinesa, o artista sediado em Xangai iniciou os estudos ainda muito jovem, depois de ter ingressado no
conservatório da cidade. “O meu amor pelo jazz surgiu quando era miúdo – tinha 10 anos. Estava a ouvir os
álbuns dos meus pais e escutei a Billie Holiday. Comecei então a ouvi-la muito. E quando comecei a cantar,
retornei a esse som”, revelou certa vez.
Anos mais tarde, Zhao estava a estudar música clássica,
chinesa e ocidental, numa altura em que ainda não era fácil, a quem vivia na China, seguir uma carreira no
jazz. Os novos entusiastas não tinham outra alternativa senão autoeducar-se, com a ajuda de cassetes-vídeo e
discos, ou aprender com os amigos. Assim sendo, foi já em meados dos anos 90, à medida que o jazz vindo do
ocidente se tornou cada vez mais acessível no país, que Coco pôde finalmente dedicar-se a tempo inteiro à
sua paixão. Para além de algum tempo dedicado à teoria, o jovem vocalista foi-se imergindo de forma gradual,
captando ritmos e cadências, começando a compreender a linguagem universal do jazz. Embora nunca tivesse
tido qualquer treino formal de voz, Zhao desvenda que desenvolveu as suas capacidades vocais no chuveiro, o
que felizmente aconteceu mesmo a tempo para que pudesse fazer parte da reemergente cena de Xangai.
Há muito considerada como uma cidade de começos, um pote cultural onde se fundem Oriente e Ocidente, a proeminência da cidade de Xangai enquanto metrópole do jazz cresceu e desvaneceu-se entre os anos 20 e a década de 40. Enquanto primeira grande metrópole moderna da China no início do século XX, a cidade foi também a primeira paisagem urbana do país onde se puderam ver as primeiras ruas iluminadas, os eléctricos e os primeiros grandes armazéns. Parcialmente dividida entre um punhado de concessões estrangeiras, foi durante estes tempos de sublevação, agitação política e de abertura que a cidade portuária se desenvolveu enquanto centro comercial. Tal estatuto depressa atrairia uma onda de intelectuais, aventureiros e artistas, oriundos da China e do resto do mundo. Impelida pelos esfusiantes bares de marinheiros e militares, a exclusividade dos clubes para estrangeiros e os inúmeros “salões de dança volantes”, a abarrotar de clientes em busca de acompanhantes, a cidade oferecia um exuberante e fértil terreno cultural. Paralelamente à transformação em dinâmico centro de publicação e média, Xangai viu nascer uma pujante indústria discográfica. Cimentado pela popularidade crescente das transmissões radiofónicas, o novo circuito asiático partia da costa Oeste dos Estados Unidos, trazendo consigo uma corrente de músicos afro-americanos que iriam estabelecer a cena jazz local. Para além das influências intercontinentais, o novo swing asiático nasceu de uma fusão de música pop criada para o cinema e um híbrido de temas populares chineses. Foi também a primeira vez que músicos chineses começaram a fundir temas jazz e música popular, criando uma mescla de romance e luxúria que alguns críticos locais depreciavam, chamando-lhe “música amarela”.
Apesar de alguma resistência interna, a emergência de uma atmosfera especial foi ganhando força, abrindo espaço à ascensão de estrelas locais. Entre estas surgiram cantoras como Zhou Xuan, conhecida como a “voz de ouro” e considerada como a grande vocalista dessa era, e Yao Lee, uma artista de rádio descoberta pela própria Zhou, que por sua vez ganharia o epíteto de “voz de prata”. Naquele tempo, graças à popularidade dos temas musicais, da rádio e dos filmes, as indústrias musical e cinematográfica alimentavam-se mutuamente, desenvolvendo uma relação de interdependência entre a promoção discográfica e a venda de bilhetes de cinema. Por outro lado, o gosto pela experimentação juntou músicos criativos como Buck Clayton e Li Jinhui. Clayton era um músico afro-americano de jazz, estabelecido e influente, que tocou com a conhecida Orquestra de Count Basie e desembarcara em Xangai em 1935 com a sua Harlem Gentleman Band, e Li um compositor e escritor de canções frequentemente apelidado de pai da música popular chinesa. Esta improvável parceria resultou na criação de um som inovador chamado Shidaiqu, que literalmente quer dizer “canções da era”. O novo swing representaria o prólogo de muitas colaborações futuras.
Contudo, Xangai atravessava décadas turbulentas nos anos de 1930 e 1940 em diversas outras frentes, com a cidade a ter que lidar com sublevações sociais, guerra civil e até mesmo a invasão japonesa, impactos tectónicos que tiveram obviamente consequências em múltiplas perspectivas, incluindo, claro está, o panorama musical que teve então de enfrentar diversas restrições. O jazz murchava na cidade. E até aos anos de 1970 a música shidaiqu continuou a experienciar retrocessos em cima de retrocessos, com o encerramento de instalações e até perseguições, sendo que vários músicos optaram simplesmente por escapar (muitos deles para a vizinha Hong Kong). A cena jazzística de Xangai estava a atravessar um longo deserto.
Não obstante esta longa travessia, o jazz na cidade nunca se desvaneceu totalmente, graças a pequenas “bolsas de resistência” como a Old Jazz Band, um grupo de músicos octogenários cujos concertos no Peace Hotel continuam a encapsular o antigo swing de Xangai. Dando um salto para os anos 90, meio século após essa era de conturbados entusiasmos, o jazz começou de novo a vibrar na cidade em que Coco Zhao completou a sua metamorfose musical. Para além da efervescência de novos bares, clubes e etiquetas, Xangai começou a “fermentar” os seus próprios festivais em grande escala. Levado pela emergência da nova vaga jazzística, cujo público se renderia tanto à sua excentricidade e repertório como ao seu estilo, o cantor depressa subiu à ribalta. Fascinado pelo que descreveu como uma natureza “altamente inclusiva”, Zhao fez regressar a mescla de sabores do jazz dos anos 20 e 30, dando uma enorme contribuição a um período de renascimento do género musical. Para além de ter subido ao palco para actuar ao lado de lendas como a sensação norte-americana Betty Carter, ou do festival de Jazz de Montreal, colaborou com variados músicos, como o violinista Peng Fei com quem trabalhou numa série de interpretações de antigas melodias chinesas. Essas músicas fazem parte do produto final de Dream Situation, um álbum que apresenta arranjos modernos de standards, alguns dos quais se tornaram populares em Xangai há mais de 70 anos. Embora tenha surgido, uma vez mais, alguma rejeição inicial a este som renovado, fazendo lembrar alguma crítica que o jazz recebeu nos seus anos de ouro, o público acabou por se render à música de Zhao. Apesar de se ter receado pelo desaparecimento permanente deste género, afinal parece que o jazz esteve apenas adormecido. Felizmente, e graças à veia inovadora de músicos como Coco Zhao, um novo e entusiasmante ciclo estará apenas no seu começo.